sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Xadrez

Jussara move a torre com gozo em direção ao xeque. Primeiro da partida. Ela é boa no xadrez tal como é esperta e inteligente em tudo o que faz. Não é à toa que hipnotiza os amigos do seu grupo de teatro. Todos a adoram, riem com ela. Seu cavalo avança, pressiona a rainha adversária, encurrala. Nervoso, seu oponente derruba as torres no colo dela. “Ah, não!”, ela protesta, seu jeito inconfundível. “Bota no lugar, vamos voltar ao jogo”. Ele vacila, pensa em desistir diante de uma provável derrota, olha ela sentada, as torres sobre o colo. Jussara reage, excitada: “Vai ficar me olhando, vamos!”. Ele pega as torres, arruma no tabuleiro, alisa o queixo.

Jussara tinha 14 anos quando seu tio foi com ela pela primeira vez a uma montagem, um espetáculo de teatro com muitos bichos e cenários coloridos. Ela amou, ficou zonza, chegou a chorar. Alguns meses depois, seu tio viajou para Manaus e lá se casou com uma nativa. Jussara e o tio eram bem unidos. Tanto quanto um pai é unido com uma filha. O pai verdadeiro nunca fora conhecido. Assim ela elegeu o tio como pai. E ele correspondeu à altura. O tio ligava quase todos os dias de Manaus, escrevia cartas, mandava e-mail e não havia uma única data de aniversário que não chegasse um magnífico presente endereçado a ela. Ele nunca a esqueceu, nunca perderam contato.

Com menos de 20 anos, decidiu fazer teatro e não encontrou resistência da família. Especialmente o tio que gostava de ver Jussara tão dedicada e interessada em algo. “Ainda vou te ver na televisão”. A sobrinha rebatia, sorrindo: “Não me importo com televisão, quero atuar, representar mil papéis”. Jussara se juntou a um grupo na faculdade que montava uma peça atrás da outra. Mal se formou, vieram as viagens. Numa cidade conheceu André, um exímio enxadrista. “Você tem muito talento, é ótima”, ele disse a Jussara no camarim do teatro, onde o grupo acabara de encenar um drama. “Que bom que você gostou”, disse.

Eles se viram depois, conversaram e riram muito, numa afinidade breve e magnética. Rapidamente a afinidade se tornou interesse que evoluiu para amor. Ele a acompanhava em suas viagens. Tornaram-se um casal leal e comprometido. Ela começou a se interessar por xadrez. Ficou tão boa que à vezes perigava superar o mestre. Ela se derretia: “você é o meu norte, meu apoio”. Ela dizia que nada a faria mal, porque ele estava ali para protegê-la, como uma imponente torre de castelo medieval, como uma torre de xadrez protege o rei. “Você e meu tio são as pessoas mais importantes para mim. Vocês são as minhas duas torres”.

Era com André que disputava uma partida quando uma das torres lhe caiu no colo. André recuou com seu cavalo para proteger o rei e perdeu um dos seus peões na empreitada. Nesse instante, em plena partida, o celular dela toca. Jussara atende, fala pouco, sua expressão é terrível. O sobressalto, o choro. André se ergue assustado, o tabuleiro vai ao chão, as peças se espalham. Jussara se vira para ele com os olhos vermelhos, as lágrimas desatam. Ela agarra André que a acolhe. Só bem depois, Jussara consegue falar. No xadrez da vida, ela perdeu uma de suas torres. André beija seus olhos e a abraça mais apertado.

O jogo continua. A vida.


(Janeiro de 2009)

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