sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

mãe, a minha

eu era só um moço jovem
perdido num tempo velho
não estava preocupado quando tudo aquilo aconteceu
quando toda aquela chuva se precipitou
o coração nem batia olhos
os olhos nem mesmo piscavam
ante um céu preto de furos no teto
as estrelas que minha mãe não me deixava apontar
- dá verruga, não faz isso!
hoje eu sei que o que chamam assim
é apenas uma pequena protuberância cutânea
que não nasce por mágica nem não
minha mãe sempre diz as coisas mais doidas
das quais eu tinha o mais genuíno assombro
outras eu morria de rir e eram boas inteligentes
como ela mesma é
mas verruga no dedo?



(Agosto de 2007)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Xadrez

Jussara move a torre com gozo em direção ao xeque. Primeiro da partida. Ela é boa no xadrez tal como é esperta e inteligente em tudo o que faz. Não é à toa que hipnotiza os amigos do seu grupo de teatro. Todos a adoram, riem com ela. Seu cavalo avança, pressiona a rainha adversária, encurrala. Nervoso, seu oponente derruba as torres no colo dela. “Ah, não!”, ela protesta, seu jeito inconfundível. “Bota no lugar, vamos voltar ao jogo”. Ele vacila, pensa em desistir diante de uma provável derrota, olha ela sentada, as torres sobre o colo. Jussara reage, excitada: “Vai ficar me olhando, vamos!”. Ele pega as torres, arruma no tabuleiro, alisa o queixo.

Jussara tinha 14 anos quando seu tio foi com ela pela primeira vez a uma montagem, um espetáculo de teatro com muitos bichos e cenários coloridos. Ela amou, ficou zonza, chegou a chorar. Alguns meses depois, seu tio viajou para Manaus e lá se casou com uma nativa. Jussara e o tio eram bem unidos. Tanto quanto um pai é unido com uma filha. O pai verdadeiro nunca fora conhecido. Assim ela elegeu o tio como pai. E ele correspondeu à altura. O tio ligava quase todos os dias de Manaus, escrevia cartas, mandava e-mail e não havia uma única data de aniversário que não chegasse um magnífico presente endereçado a ela. Ele nunca a esqueceu, nunca perderam contato.

Com menos de 20 anos, decidiu fazer teatro e não encontrou resistência da família. Especialmente o tio que gostava de ver Jussara tão dedicada e interessada em algo. “Ainda vou te ver na televisão”. A sobrinha rebatia, sorrindo: “Não me importo com televisão, quero atuar, representar mil papéis”. Jussara se juntou a um grupo na faculdade que montava uma peça atrás da outra. Mal se formou, vieram as viagens. Numa cidade conheceu André, um exímio enxadrista. “Você tem muito talento, é ótima”, ele disse a Jussara no camarim do teatro, onde o grupo acabara de encenar um drama. “Que bom que você gostou”, disse.

Eles se viram depois, conversaram e riram muito, numa afinidade breve e magnética. Rapidamente a afinidade se tornou interesse que evoluiu para amor. Ele a acompanhava em suas viagens. Tornaram-se um casal leal e comprometido. Ela começou a se interessar por xadrez. Ficou tão boa que à vezes perigava superar o mestre. Ela se derretia: “você é o meu norte, meu apoio”. Ela dizia que nada a faria mal, porque ele estava ali para protegê-la, como uma imponente torre de castelo medieval, como uma torre de xadrez protege o rei. “Você e meu tio são as pessoas mais importantes para mim. Vocês são as minhas duas torres”.

Era com André que disputava uma partida quando uma das torres lhe caiu no colo. André recuou com seu cavalo para proteger o rei e perdeu um dos seus peões na empreitada. Nesse instante, em plena partida, o celular dela toca. Jussara atende, fala pouco, sua expressão é terrível. O sobressalto, o choro. André se ergue assustado, o tabuleiro vai ao chão, as peças se espalham. Jussara se vira para ele com os olhos vermelhos, as lágrimas desatam. Ela agarra André que a acolhe. Só bem depois, Jussara consegue falar. No xadrez da vida, ela perdeu uma de suas torres. André beija seus olhos e a abraça mais apertado.

O jogo continua. A vida.


(Janeiro de 2009)

Te amo, te amo, te amo...

Era madrugada ainda. O Mitsubishi Lancer estacionado no rico condomínio Rancho das Margaridas tinha duas de suas quatro portas abertas.

- Preciso pegar a bolsa lá em cima. - Mariana Conte falou de si para si enquanto pensava que aquela era a primeira viagem com César, seu noivo. Mariana amava César. Estava distraída com seus pensamentos e foi quando se deu conta que faltava uma bolsa.

Mariana subiu as escadas até o quarto, pegou a bolsa em cima da cama e sentiu o mundo girar ao seu redor. Começou como uma tontura e uma dor de cabeça lhe subiu de trás, da nuca, até a testa. A dor era tão forte que parecia lhe triturar o cérebro. Paralisou de dor e lágrimas encheram-lhe os olhos. Ela teve tempo apenas de sentar na cama. Trêmula e parecendo em transe, suas mãos apertavam a cabeça, até que Mariana desabou no chão do quarto. A sua empregada já estava acordada e, atraída pelo barulho, correu até o local e viu a patroa desfalecida. Não conteve um grito de horror que acordou toda a vizinhança. Eram 5h10 da manhã, uma sexta-feira. Mariana foi levada ao hospital. César foi avisado e correu pra lá.

Depois de um ano de namoro, César entendeu que estava na hora de tomar uma decisão, assumir um compromisso sério. Mariana Conte é advogada, vem de uma família de ricos advogados, teve uma vida abastada com viagens anuais ao exterior. Sua pós-graduação foi em Berlim, onde viveu por três anos. Já ele não poderia ter tido origem mais humilde. Seu pai foi estivador na juventude, depois arrumou emprego num barco de pesca onde permaneceu por trinta anos até se aposentar. Passava mais tempo no mar que em casa. Sua mãe criou os quatro filhos praticamente sozinha. Viviam com dinheiro contado e luxo zero. Com muito custo, César estudou, formou-se em Ciência da Computação.

Naquela manhã, no hospital, ouviu do médico que Mariana tinha uma doença rara, pouquíssimo conhecida. Era um distúrbio que causava um tipo de blackout no organismo. O corpo atingido simplesmente apagava, paralisava todas as funções vitais por tempo suficiente para causar-lhe desfalecimento. Até onde se sabia, não tinha cura. O médico disse que usaria um tratamento para reduzir os sintomas: tontura, forte dor de cabeça e confusão mental.

Apesar da triste notícia, o casamento foi realizado meses depois. A doença avançou e Mariana foi acometida cada vez mais pelos apagões. Foi levada aos melhores médicos do mundo que não conseguiam resolver o problema. Morreu antes dos 30 anos. César, ainda jovem, não passou um único dia do resto de sua vida sem lembrar o rosto e o lindo sorriso de sua mulher. Ele estava 30 milhões de reais mais rico desde que casara com Mariana. E foi esse o valor da quantia que ele doou a uma instituição que pesquisa doenças raras como a de Mariana e ajuda os doentes e seus familiares.

Alguns anos depois que perdeu a esposa, César mudou-se para o litoral. Todas as noites ele sonha com sua mulher e em todas as ocasiões ela lhe repete no sonho: te amo, te amo, te amo... Ele nunca teve coragem de casar outra vez.


(Dezembro 2008)

Um pombo

com o pensamento em eloá catarine.

Meu nome é nada.
Não sei o que sou
na sua presença.
Gosto de estar perto
quando você passa.
Sabe que gosto mais
dos lugares depois
que seus pés
pisaram lá? Já gosto
mais de Manaus, por
exemplo. E gosto
tanto mais de
Salvador que respira
o mesmo ar e
entrega suas ruas
pra você andar de
graça. Não quero
esquecer aquele
gesto seu que joga
um beijo no ar – não
é banal, não é nada.
É um mundo que
acaba pra se refazer
melhor. Sabe, you
are fire. I love your
eyes, your smile,
your lips. I love all
nights and weekends
because I love be
with you. Esse gesto
lindo beijo que você
entrega em minha
direção. É bala de
revólver em minha
mão, espicaçando,
esmigalhando
derme, epiderme,
osso, órgão,
coração. Não é bala,
projétil, mas vai
fundo tanto quanto
no meu peito. Esse
beijo lançado é
comida aos pombos.
Eu já sei quem eu
sou: sou esse
pombo que espera
por ti, every day,
minha flor.


(Outubro de 2008)

Chocolate

- Vai um chocolate?
- Putz, me conta. E aí, como foi?
- Espetacular...
- Espetacular como? Conta tudo.
- Foi muito bom, tudo certo, cheguei, fui direto. Ela é experiente, foi facilitando, não tem essas coisas de menina nova, não perde tempo. Espetacular...
- Conta mais, conta mais...
- Linda, nem parece que tem trinta e cinco anos, ela me disse que tem trinta e cinco, e eu batuquei. Putz, não tem, não acreditei, é uma deusa. Espetacular...
- Que tal o beijo?
- Um sonho... Ela queria me encontrar de novo, me disse que me queria todos os dias, me deu a chave do apartamento e tudo. Isso, de primeira. Uma dama...
- E você vai, claro, né? Filma pra mim, na moral.
- Não dá.
- Como assim, não dá?
- Não dá, não dá. Não vou mais lá, não posso. Fica na tua.
- Por que isso agora?
- Depois que nós fizemos a segunda vez, eu, você sabe...
- Não sei, bicho, me fala... Conta tudo.
- Eu já estava no chuveiro. Não sei bem como aconteceu, acho que ela teve um ataque cardíaco, uma coisa assim. Não entendi bem. Ela teve um troço esquisito, falava de dor, sufoco, apertava o peito. Foi tudo muito rápido. Numa hora tava comigo, na outra hora, nem respirava. Ficou lá, dura...
- Morta?
- Acho...
- Não acredito...
- Tô te dizendo...
- E o que você fez?
- Vesti a roupa, corri o apartamento, procurei algo pra levar embora.
- Tinha coisa boa no apartamento?
- Tinha, tinha. Um DVD desses que gravam, comprado diretamente nos states, com instruções em inglês. Peguei também um dinheiro, pouca coisa, tinha dólar e real. Uns 10 mil. Ah, e esses chocolates, diz ela que são chocolates austríacos. Gostei de uma caixa de jóias, parecem bem caras. Passei para Cascão avaliar, ele acha que é tudo legítimo, vou lá mais tarde, uma grana boa...
- Muito bom. Vai fazer o quê com a grana? Lembra do seu amigo aqui, hein...
- Eu sei, eu sei, tô pensando. Vou te pagar o que devo, depois vou viajar...
- Show. Ela sofreu muito...
- Um pouco... Acho que morreu sem saber direito o que houve. Fiquei olhando sem saber o que fazer, depois fui embora com as coisas.
- Se desconfiam de você? Porteiro, segurança, foi filmado?
- Nada, ninguém me viu. Ela não me conhecia antes. Entrei e saí numa boa, convidado. Ela facilitou tudo, não queria que ninguém me visse, mulher casada. Foi tudo fácil.
- Boa de amor?
- Boa, boa toda. Uma pena. Dava um romance bom. Eu acho que apaixonava.
- E agora?
- Fazer o quê, tocar a vida. Viajar pra um lugar de praia, conhecer umas gatinhas cheirosas... Vou pra um lugar que nunca fui, tô pensando na Bahia.
- Boa.
- Vai um chocolate? É austríaco. Legítimo...
- Claro.

(Janeiro de 2008)

Sig-Sauer P220

Diono Carlo, primeiro assessor do prefeito do rico município de Papiro do Norte, já estava angustiado. Esperava há uns cinco minutos naquele ambiente escuro com luzes azuis e música alta. Estava bem longe de casa e desconfortável. Quando seus pensamentos foram interrompidos, um alívio. Ela chegou, postou-se ao seu lado, estonteante como sempre, cigarro numa mão bem feita de unhas lindas e longas. Os cabelos loiros e os olhos claros que reforçam o que ela costuma falar, que é legítima descendente de alemães. Alta, elegante e vestida sensualmente. Sobre um longo vestido vermelho, um sobretudo trench-coat preto. Deu o seu sorriso costumeiro de garota de 18 anos, embora tivesse bem perto dos 30.
"Vamos, vamos." Disse Diono, apressado. "Vamos sair."
"Agora." Sorriu Olívia. Chama-se Olívia.
Do lado de fora, esperava o seu Lexus metálico novinho. A conversa começou no carro. Ele deitou as mãos no volante, olhou fixo para frente e respirou por um momento. Olívia jogou o cigarro na calçada, entrou, sentou-se e ajeitava os brincos perolados. A minúscula bolsa sobre as longas pernas dava algum charme quando justaposta ao vestido vermelho sangue que parecia brilhar no escuro. Ele começou:
"Preciso muito de você. Mais uma vez. Outro serviço importante." Disse sério, telegráfico.
"Quanto?"
"Bastante. Você vai ganhar bem."
"OK, estou às ordens. É só dizer."
"Você vai precisar disso." E estendeu a pistola alemã Sig-Sauer P220.
Os olhos de Olívia brilharam: "Caralho, é perfeita."
"Quem?"
"Teu irmão, o Souza Brito..."
"Você tá louco! Quer que eu mate um prefeito?!"
"Shiiii... isso mesmo. O prefeito. Presta atenção no que você vai ter que fazer". Enquanto falava, foi saindo com o Lexus.
"Essa pistola é linda... Depois, posso ficar com ela?"
"Cala a boca e ouve."

(Abril de 2007)

ponto final

sento um pouco num bar de esquina. admiro o garçon prestativo que me vem atender. um chope, com colarinho, por favor. é novato, muito melhor que o garçon preguiçoso que ele parece substituir. o chope chega. a rua tem muito movimento de passantes. não me surpreendo quando verona senta em silêncio. olhos vivos grandes de sempre, mas parece claro que ela chorou. os olhos verdes brilham como sempre. olhos jovens, de menininha, que dão juventude àquela mulher de 35 anos. o garçon se aproxima, ela pede uma dose de conhaque. estranho, ela que não bebia nem champagne em passagem de ano. agora essa. olho pra ela sem olhar realmente. vamos resolver isso de uma vez? ela não fala, olha de volta. pergunto se está tudo bem. tudo, tudo bem. preciso lhe falar. mais um gole do chope geladíssimo. penso, não sei porquê, nos filmes de oeste americano. o caubói entra, pede uma bebida. nesses filmes, dificilmente haverá mulheres que peçam conhaque. o garçon estranharia. isso lá. verona vira quase metade do copo. estou com outro cara, diz. hummm, o sussurro desinteressado foi toda minha reação.meia hora antes, o cinema. não saí exatamente triste do filme de woody allen. recostei a cabeça um pouco mais no banco, olhei ainda um pouco os créditos, e saí finalmente. parei na banca de revistas, comprei chicletes. um senhor de 46 anos mascando chicletes é meio ridículo, mas não resisto a velhos vícios. andei calado ainda algum tempo. ela – verona – estava na minha cola desde antes do filme. fingi não a ter visto. e andei um pouco para pensar no desdobramento de “match point”. a questão da sorte colocada pelo diretor. a trilha de ópera do filme. o trecho de fantástico quando os mortos aparecem para conversar.embora me revele a existência de outro homem em sua vida, até outro dia verona não aceitava a nossa separação. não adiantava dizer que eu também sofria muito com a decisão de sair de casa. havia uma outra pessoa na história, uma outra mulher, é verdade. mas não é essa pessoa o motivo do meu divórcio. depois de um ano de brigas quase diárias é difícil querer ir pra casa. casei apaixonado, louco de paixão. mas em cinco anos o prédio da instituição casamento ruiu, pelo menos para nós. tentei várias vezes resolver os conflitos de forma que o relacionamento fosse salvo. não foi possível. paciência. a vida continua. estou com outro cara, recordo ela falando. verona me encarou mais uma vez. colocou o dinheiro do conhaque sob o copo, como nos filmes. saiu andando até sumir na escuridão. voltei a pensar no filme de woody allen.acho que é um bom momento para ter um outro filho.

(maio de 2006)